FILMES (IR)REFLETIDOS
JORNADAS DE FILOSOFIA DO CINEMA


Numa época em que, por motivos distintos e em graus desiguais, o cinema e a filosofia parecem viver tempos de mudança, de perigo ou de crise, conforme o ângulo ou a bondade como se olham as suas existências, o desafio que se apresenta é, ao mesmo tempo, metodologicamente simples e, esperamos, didaticamente profícuo: cada participante destas jornadas escolhe um ou o filme no qual, em seu entender, estes dois campos - o cinematográfico e o filosófico – se cruzam com a maior intensidade. No final, pretende-se um sucinto mas sintomático guia que, em última instância, deve funcionar mais como um conjunto de vias abertas do que de escolhas fechadas para refletir sobre esta temática.
Usamos propositadamente o termo “refletir”, pois o cinema refletido na filosofia ou a filosofia refletida no cinema constituem dois vetores de igual potencialidade e promessa, com inevitáveis tensões e aporias. Nesse sentido, o mote será precisamente o exercício do livre-pensamento enquanto necessidade ou prazer, desígnio ou jogo, em toda a sua abertura ou premência; no fim de contas, trata-se de assumir a filosofia como metodologia alternativa (ou mesmo privilegiada) da teoria cinematográfica e, simultaneamente, base da análise e da crítica fílmicas.
Cada participante deverá, portanto, escolher um filme-epítome no qual, ou a partir do qual, sejam ou possam ser abordadas as articulações, intersecções, inquietações, perplexidades, espelhamentos, divergências ou diálogos entre imagens e ideias, obras e pensamentos, discursos e doutrinas, matérias e convicções. Das ideias expendidas espera-se, futuramente, um aprofundamento teórico – por essa razão, o livro a resultar das intervenções, mais do que um cânone mínimo, deverá ser visto como um guia convidativo.

Programa


18 MAIO

Auditório da Biblioteca / Universidade da Beira Interior

9H30

Abertura oficial
Paulo Serra – Presidente da Faculdade de Artes e Letras

10H00

Crítica de cinema e experiência estética
Tito Cardoso e Cunha

Do cinema filosófico à filosofia cinemal
André Barata

Oh my god, it’s full of stars! O sublime em 2001 – Odisseia no Espaço
Luís Nogueira







14H00

Liv Ullmann: reflexões e sensibilidades de uma atriz melancólica
Ana Catarina Pereira e Anderson de Souza Alves

Peixes e Deuses: A condição humana em Lifeboat de Hitchcock
Ana Leonor Morais Santos

A estética de Tocha ou uma experiência do recolhimento
José A. Domingues

Falar com o cinema de Asghar Farhadi – carta aberta dirigida ao realizador iraniano: O Vendedor ou as interpelações que começam pela vingança
António Rebelo

Resumos


Crítica de cinema e experiência estética
Tito Cardoso e Cunha

Breves reflexões sobre a relação entre o discurso da crítica cinematográfica e a experiência estética própria do cinema como arte.

Do cinema filosófico à filosofia cinemal
André Barata

A filosofia é a prática de pensar radical que se pergunta pela própria prática de pensar, que se pergunta auto-referencialmente de forma incondicional. Sem dificuldade, admitimos que esta prática acompanha a história da humanidade desde que esta soube fazer uso da linguagem. E só com muita dificuldade admitimos que apenas uma certa humanidade tivesse produzido cultura filosófica. Que poderia ser uma cultura que passasse completamente ao lado dessa prática de pensar ao ponto de não se pensar a si própria de alguma maneira? Por isso, a filosofia parece-nos coeva e universal ao humano que linguaja e se cultiva. Sem dificuldades de maior, admitimos ainda que, na história dessa prática, prevaleceu a palavra simplesmente por ter sido assim na história da linguagem. Talvez por, mais do que qualquer outra forma de linguagem, a palavra ter sido meio de comunicação humana. Talvez ainda por comunicar discriminações maiores, e conseguir conservá-las, estáveis e fiáveis, na escrita. Não nos interessa aprofundar este tema mais do que dar por adquirido que a história da linguagem teve, na história da língua e da palavra, a sua não única mas mais marcante manifestação histórica. E que sobretudo por aí a filosofia foi uma prática de pensar tradicionalmente afim da literatura. Expressou-se também por palavras e ambas, filosofia e literatura, em registos variados, não raro híbridos, acompanharam-se historicamente. Simplesmente, estas razões, por serem históricas, falam-nos de uma contingência e não de uma necessidade. E é a essa luz que nos interessa explorar a possibilidade de uma nova direcção que a filosofia, como prática do pensar radical, parece ter adquirido de forma mais do que convivencial, a partir da assunção de que o cinema é uma linguagem de pensamento. Não se trata, contudo, de reportar a existência de filmes que exprimem, por outras vias, problemas que a filosofia tratou ou trata, independentemente da sua expressão cinematográfica. Nem sequer se trata de dizer que alguns desses problemas filosóficos terão uma dimensão intrinsecamente próxima do cinematográfico — Quantas alegorias da caverna ou quantas imagificações do tempo que corre não encontramos no cinema? Trata-se sim de fazer uma completa inversão e pensar, ou conceber simplesmente, que o cinema é genuína linguagem de pensamento, que pensa por si, e assim independentemente da sua expressão filosófica verbal, que não traduz, mas pode dever ser traduzido numa tradução que não é de línguas, mas de linguagens, que não recorre a dicionários, mas a experiências, situações, a quadros de pensamento. E não para traduzir cinema em filosofia, mas para traduzir filosofia cinemal em filosofia verbal. Entre as duas, há diferenças que as põem em relação de acordo com os contextos que privilegiam uma ou outra. Pode, talvez, justificar-se afirmar que a prática de pensar através do cinema reverbera a auto-referencialidade do pensar. Mas, para explorar esta e outras hipóteses que, na verdade, dão conta de uma metamorfose da expressão do pensar filosófico tomaremos para análise a trilogia Qatsi de Godfrey Reggio — Koyaanisqatsi (1982) , Powaqqatsi (1988), Naqoyqatsi (2002) — porque nela se encontram os elementos para uma teoria desse cinema que pensa filosoficamente ou, mais incisivamente, dessa filosofia cinemal.

Oh my god, it’s full of stars! O sublime em 2001 – Odisseia no Espaço
Luís Nogueira

A categoria do sublime tornou-se, ao longo da história da estética, uma ferramenta conceptual cada vez mais importante para se entender um conjunto de fenómenos muito diversos nas mais diversas artes. Nesta reflexão, elegemos o clássico de Stanley Kubrick, de 1968, como objeto privilegiado de manifestação do sublime em diversas das suas modalidades. Recorremos aos desdobramentos do conceito propostos por Longino, Burke, Kant ou Derrida, entre outros, para, de algum modo, ensaiarmos uma apreciação estética e uma interpretação filosófica da obra, incidindo em aspetos como o infinito, o informe, o transcendente ou o colossal, por exemplo, de modo a compreender a perenidade e proficuidade que o filme – de uma forma invulgar, pensamos – tem revelado insistentemente nos últimos 50 anos da história do cinema e da cultura em geral.

Liv Ullmann: reflexões e sensibilidades de uma atriz melancólica
Ana Catarina Pereira e Anderson de Souza Alves

A nossa apresentação tem como objetivo aplicar a reflexão proposta por Jacques Aumont em As Teorias dos Cineastas às experiências e vivências relatadas por Liv Ullmann. Para tal, apresentamos uma análise do livro Mutações, auto-biograficamente escrito pela atriz e realizadora. Na obra destacam-se reflexões sobre o processo criativo da realização, interpretação e produção cinematográficas, tendo em vista os modelos de cinema hollywoodiano e europeu, nos quais a cineasta participou com diferentes intensidades. Através do relato, centrado num período entre as décadas de 70 e 80, procuramos destacar os conceitos que norteiam o pensamento da autora sobre os filmes nos quais participou neste período, num diálogo entre as Teorias dos Cineastas e os aspetos de género que as suas páginas nos suscitam.

Peixes e Deuses: A condição humana em Lifeboat de Hitchcock
Ana Leonor Morais Santos

Com a Segunda Guerra Mundial a decorrer, Hitchcock realiza um filme com uma notória mensagem política, de leitura simples e imediata, ainda que não incontroversa. A densidade de Lifeboat não está aí. Juntando num salva-vidas oito náufragos, vítimas de um ataque de um submarino alemão, e um nono, capitão desse mesmo submarino, dá-se um confronto das personagens com questões éticas e de sobrevivência, e uma interpelação do espectador numa dimensão existencial.
Partindo da exposição da vertente política, nomeadamente, da forma como a Alemanha nazi e as Forças Aliadas surgem representadas, buscamos sobretudo os sentidos éticos descortináveis em personalidades tão diferentes quanto a de uma repórter, um comunista e um empresário, e o sentido antropológico presente como elemento comum, porque afinal todos partilham a condição humana, que parece à deriva, que oscila entre a suspeita e a solidariedade, a esperança e a resignação, a fé e o cepticismo quanto à possibilidade de salvar o ser humano de si mesmo.

A estética de Tocha ou uma experiência do recolhimento
José A. Domingues

Uma viagem no mar, vivida no interior de um pequeno barco, Balaou, é a possibilidade de uma apresentação do cinema que passa pela ideia de que uma experiência tenha de ser criada esteticamente. É essa experiência a superfície propriamente cinematográfica de Balaou. Que um itinerário implique uma análise do seu sentido dado na própria imagem. Pois todo o interesse do autor parece ser o de um cinema que faça ver que é necessário o trabalho de revelar a essência de uma experiência. É numa viagem no mar onde os dados imanentes ao estar aí se dão como uma percepção estética. Ou: a estética do cinema de Tocha cria, de modo correlato, uma experiência que implica um acesso ao ser do fazer cinema (obra) como um modo de instituição de um recolhimento que signifique adquirir um ver, o do autor: «Podes [mãe] voltar a ver tudo, outra vez, através de mim.» É esta relação entre estética e recolhimento que nos orienta no filme Balaou.

Falar com o cinema de Asghar Farhadi – carta aberta dirigida ao realizador iraniano: O Vendedor ou as interpelações que começam pela vingança
António Rebelo

Um dos aspetos incontornáveis da filosofia do cinema é a constatação de que o cinema pensa e pode fazê-lo, sobretudo, a partir do justo momento em que abrimos um diálogo com ele, constituindo-se então como um excelente interlocutor vivo. Há, seja de forma explícita, ou não, uma lógica que transcorre da imagem e que torna o cinema entidade produtora de razões. Este aspeto é tanto mais importante se cada um de nós se colocar diante do filme, promovendo para com ele uma fala problemática. Esta concebe-se no sentido interrogativo, interagindo e penetrando no circuito expressivo que vive sob diferentes modos, seja na imagem, no audível, na sugestão ao imaginário ou no painel conceptual e argumentativo que a narrativa propõe. É, pois, com este propósito que rumamos à fala com Asghar Farhadi. Há, numa certa cinematografia iraniana, um cinema que é um ser vivo feito no relato humano que se exprime através da imagem. Sendo assim, o que é proposto é encontrarmos a harmonia desde o caos, a beleza desde o hediondo. Por isso, nos filmes do cineasta iraniano vemos aspereza e poesia; vemos locais sujos e rostos belos; vemos mesquinhez e dignidade nos seres humanos. É esta dupla que percorre os filmes de Farhadu e O Vendedor não seria agora exceção. O Vendedor explora a duplicidade em toda a sua arte. Há cinema e teatro, há, para isso, um fio que, entrelaçando-se, coliga ambas as manifestações artísticas; há a prática da vingança praticada por um homem cordato; há a prática da vingança estabelecida no avanço e no recuo da ação executória, sendo o avanço ditado pelo ódio e o recuo ditado pelo medo, ou mais precisamente por aquilo que o irriga: o sentimento de culpa; há, por fim, a vingança ativa e a suspensa que recai sobre o humilhado que agora humilha. O Vendedor é ainda o local: o apartamento que confirmou, por ser o espaço de todas as decisões, a vida triste e fracassada de pessoas comuns, tal como na peça teatral de Arthur Miller, A Morte de um Caixeiro-Viajante. Mas porque Hélder Santos Costa dizia, a respeito do Irão e da nossa ligação histórica a esse país, que o “nosso sangue também está lá”, a melhor forma de reconhecer essa estimulante afinidade é falar com o cinema de Asghar Farhadi em modo de proximidade. Assim sendo, a comunicação a apresentar – procurando pensar com o filme que, por sua vez, pensa connosco –, constituir-se-á sob a forma de uma carta aberta dirigida ao realizador iraniano, trazendo para este texto de discurso direto e pessoal interpelações a partir do já enunciado.

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